Em 30 de setembro de 1897, uma discreta carmelita, desconhecida até de suas irmãs de convento, morre de tuberculose aos 24 anos, sob atrozes sofrimentos, em Lisieux (França).
“O que se poderá na realidade dizer da irmã Teresa do Menino Jesus após sua morte? É uma gentille petite soeur [boa irmãzinha], mas ela nada fez” (1). Eis o comentário que ela ouve, em seu leito de morte, proveniente de uma de suas companheiras... “Ela nada fez de notável, não se a vê praticar a virtude, não se pode sequer dizer que seja uma boa religiosa” (2), acrescenta a carmelita crítica, a quem aprazia passar horas prosternada diante do Tabernáculo...
Essa “desconhecida” causa agora emoção em todo o orbe, sendo comemorada nos quatro cantos da Terra, por ocasião do centenário de sua morte.
“L enfant chérie du Monde entier” (a criança querida do Mundo inteiro) (3), em torno de quem levantou-se “um furacão de glória” (4), que se transformou num dos personagens mais populares do século XX, está para ser proclamada... Doutora da Igreja universal (5).
Essa “desconhecida”, “a maior santa dos tempos modernos” (6), “a estrela de meu pontificado”, como dizia Pio XI (7), não é, contudo, desconhecida... para ela mesma: “Bem sabeis que cuidais de uma santa!”, assevera ela a suas três irmãs, seis semanas apenas antes de sua morte (8). E, prevendo sua glória futura, misteriosamente diz: “O que o bom Deus me reserva para depois de minha morte, o que eu pressinto de glória .... vai de tal modo além de tudo que se pode conceber que por vezes sou obrigada a parar de pensar: sinto uma como que vertigem” (9).
Lisieux: grande centro de peregrinação
Ainda hoje, apesar do desinteresse crescente do público católico pelos santos, na época dessacralizada em que vivemos, Lisieux acolhe a cada ano 2 milhões de peregrinos (10), fenômeno que transformou a capital do Pays d Auge num dos locais mais visitados da França, rivalizando com os maiores centros de atração turística.
Ali se recolhem eles, ávidos de conhecer os Buissonnets, onde a Santa residiu durante sua infância e adolescência; a catedral de Saint Pierre, do século XII, por ela freqüentada diariamente, testemunha comovente de tantas reminiscências; por fim, o Carmelo, a montanha sagrada de sua santificação.
Até 7 de junho de 1944 — data do arrasador bombardeio na II Guerra Mundial, por ocasião do desembarque das tropas aliadas na Normândia — havia em Lisieux 2.900 casas, boa parte delas em estilo medieval, construídas entre os séculos XIV a XVI. Após tal bombardeio, numa só noite, 2.100 dessas residências foram totalmente destruídas.
Do Céu, no entanto, a Santa carmelita velava: os três edifícios acima mencionados foram milagrosamente poupados, bem como a Basílica a ela dedicada.
Um presente dado pelos brasileiros
Tão logo começou a explodir o culto dos fiéis por ela, essa “desconhecida” tornou-se enormemente popular no Brasil.
No Rio de Janeiro, a igreja de Santa Teresinha, situada no bairro da Tijuca (uma paróquia dirigida pelos padres Carmelitas Descalços), pretende ter sido a primeira no mundo a ser erigida em sua honra. É certo que, em reconhecimento, um dente da admirável carmelita é ali venerado, rara relíquia e notável privilégio para uma santa que, no momento da exumação de seu corpo, encontrou-se pouco mais que pó.
O “furacão de glória” atingiu o Brasil de tal forma que, ao pensar-se na urna que teria a suma honra de conter suas relíquias, a superiora de Lisieux, Madre Inês de Jesus, sua irmã segundo a carne, dirigiu-se aos brasileiros, preterindo outros povos.
Em 1995, como preparação de seu centenário, a “châsse du Brésil” (urna do Brasil) percorreu toda a França. E foi assim que pudemos venerar suas relíquias, envoltas em indizível halo de bênçãos.
Estava aprazado que, no ano de seu centenário, a “urna do Brasil” percorreria toda a Terra de Santa Cruz. Quantas multidões não acorreriam para venerar essa “desconhecida”! Entretanto, círculos bem informados da Cúria Romana advertem que outros episcopados não o permitiriam, caso tão venerável urna não fosse também visitar seus respectivos países. O projeto complicar-se-ia tanto que acabou sendo postergado, sine die.
Adentrando os muros do Carmelo
Uma série de artigos devem ser publicados a respeito da “una do Brasil” na revista “Vie thérésienne”.
Curiosamente, nisto estivemos envolvidos. Certa manhã, no Carmelo de Lisieux, tendo conhecimento de que eu era brasileiro, um sacerdote francês disse-me ser público e notório que a devoção a Santa Teresinha no Brasil era especialmente notável.
Falamos, naturalmente, da “urna do Brasil”, e eu lhe disse que possuía um livro narrando sua história (11). Seus olhos se arrregalaram, e exclamou: “Na completíssima bilblioteca do Carmelo falta esse livro. Procuramo-lo desesperadamente e não há meios de se encontrar um exemplar em país algum!”
Uma semana depois, recebi carta de outro sacerdote — este brasileiro, com funções na Cúria Romana — impaciente por obter o precioso volume que narra a história da “urna do Brasil”.
Após encontros em Roma e Lisieux, tudo terminou no parlatório do Carmelo, em julho último: doei à biblioteca do mesmo Carmelo de Lisieux o precioso opúsculo, que relata a história de mais esse elo existente entre os brasileiros e Santa Teresinha, mediante o qual nosso sentimento todo peculiar nos inclina a considerá-la, por assim dizer, um tanto brasileira.
As circunstâncias acima descritas permitiram-me realizar um anseio acalentado por mim há mais de 40 anos: adentrar os muros sagrados desse Carmelo bendito! (12)
Em junho passado, sem saber bem se sonhava ou se estava de olhos abertos, pude percorrer o mesmo solo que os santos pés da “maior Santa dos tempos modernos” pisaram, deitar meu olhar nas mesmas paredes em que seus olhos pousaram, recolher-me na enfermaria onde ela, transida de dor e de indescritíveis provações, exalou seu último suspiro; e, sobretudo, sentir minha alma embeber-se de uma atmosfera de indefinível paz, de indizível elevação e de inabalável confiança que banha o Carmelo de Lisieux. De forma tal que se passarão anos até que eu consiga, para mim mesmo, exprimi-las e senti-las inteiramente. Alimento para uma eternidade...
Doutor Plinio e a pequena Teresa
Em 1928, casualmente, o Prof. Plinio Corrêa de Oliveira, o insigne pensador e líder católico, Fundador da TFP, tomou conhecimento da “História de uma alma”. Tal foi o impacto produzido em seu espírito pela célebre autobiografia da Santa, que, certo dia, ele me confidenciou: “Até o momento dessa leitura eu pensava ter como meta ser um muito bom católico; mas foi a partir daí que compreendi a santidade e que eu devia ser santo; e foi então que tomei a decisão de o ser”.
Rezou ele então uma novena à Santa pedindo que lhe concedesse uma graça, a qual representasse grande avanço em sua vida espiritual, proporcional à mencionada compreensão da santidade. Durante a recitação da novena, caiu-lhe fortuitamente nas mãos o Tratado da verdadeira devoção à Santíssima Virgem, de São Luís Maria Grignon de Monfort, que veio a ocupar uma posição central em sua espiritualidade e em toda sua obra apostólica.
Tal novena, o Fundador da TFP transformou-a em oração que rezou diariamente até seu último suspiro. Santa Teresinha passou a ocupar um dos lugares de mais alto relevo em sua riquíssima vida espiritual.
Doutor Plinio sentia com ela profundas consonâncias e similitudes de alma. Porém o que mais o impressionava era a vocação profética da Santa quanto às novas gerações do século XX: “Sinto que minha missão vai começar — disse ela no leito de morte —, minha missão de fazer amar o bom Deus como eu O amo, de dar a minha pequena via às almas” (13).
Essa via se adapta como uma luva a gerações inteiras, estropiadas pela revolucionária e apocalíptica crise que caracteriza nosso dantesco século XX. “A minha via é segura e eu não me enganei seguindo-a”, disse ela, a 16 de janeiro de 1910, à priora do Carmelo de Gallipoli, em aparição que alcançou na época grande repercussão (14).
O Doutor Plinio tinha num conceito tão elevado a Santa Carmelita de Lisieux, que dizia ser favorável a que ela fosse declarada Doutora da Igreja. Servo amoroso dos princípios, devido ao “mulieres in ecclesia taceant — as mulheres estejam caladas nas igrejas” (I Cor. 14, 34), não lhe aprazia a idéia de que uma mulher recebesse esse glorioso título. Mas, uma vez que Santa Teresa de Avila e Santa Catarina de Siena o receberam, dizia ele ser tendente à concessão do título a Santa Teresinha. Esta era a alta conta em que ele tinha a “pequena” Teresa.
Até Prefeito socialista reconhece...
O clima de perseguição religiosa de fins do século passado, contribuíram para fazer desabrochar em sua alma apelos de guerreiro e de cruzado, de zuavo pontifício e de mártir, que tanto entusiasmaram Doutor Plinio (vide nas “Verdades Esquecidas” da presente edição, frases de Santa Teresinha, mediante as quais fica patente o aspecto heróico dessa grande carmelita).
O ambiente ultramontano daquele período a marcou. Já em sua infância, o ambiente de lutas político-religiosas em Lisieux era violento e polêmico.
No “Le Normand”, jornal monarquista de Lisieux, seu tio Guérin terçava armas contra Henry Chéron, fundador do “Le Progrès lexovien”, — republicano, socialista e anti-clerical — em torno dos grandes temas polêmicos da época: defesa do Papado, laicismo, monarquia ou república, ou ainda o affaire Dreyfus.
“Quem diz republicano diz adversário da Igreja, e quem diz adversário da Igreja diz republicano”, resume assim o clima de Lisieux nessa época o Pe. André Deroo (15).
A peregrinação a Roma — largamente comentada pela imprensa francesa quanto pela italiana — da qual participou Santa Teresinha para obter de Leão XIII licença para entrar no Carmelo aos 15 anos, era de cunho ultramontano. Durante essa peregrinação, a pequena Teresa, aos 14 anos, descobre e compreende a importância da inter-relação dos problemas políticos e religiosos. “A maioria dos católicos franceses é monarquista, contra a República, vigorosamente contra a maçonaria”, comenta D. Guy Gaucher (16).
Doutor Plinio comentava que, em tal contexto, é fácil compreender que na primeira metade do século XX o Carmelo de Lisieux tenha sido um assinalado bastião das direitas, sob a égide de Madre Inês de Jesus, irmã da Santa, até sua morte, ocorrida em 1951.
Henry Chéron, o incorrigível líder socialista, diversas vezes ministro da República, fora em sua juventude empregado da farmácia do tio de Santa Teresinha, Isidore Guérin. Naquela época, ele não podia imaginar que, mais tarde, enquanto prefeito da cidade, determinaria a abertura de uma larga avenida, que daria acesso à Basílica de Santa Teresa de Lisieux! Aquela mesma menina para quem tocava ele acordeão aos domingos, nos fundos da farmácia de seu tio!...
Oh, grande Henry Chéron, sic transeat gloria mundi! (assim passa a glória do mundo!). Hoje, quem conhecerá Henry Chéron, se não folhear alguma biografia especializada de... Santa Teresinha?! E, quem, na face da Terra, desconhece a pequena Teresa de Lisieux?
Assim, melhor se aquilata o ultraje lançado pela atual prefeita socialista da cidade, Yvette Roudy. Sim, Lisieux tem hoje uma administração socialista! A prefeita declarou constituir a desgraça para Lisieux o fato de ter colado a seu nome o de Santa Teresinha! “Que sabe o geral dos homens sobre Cirene, senão que era a terra de Simão?”, escreveu em sua já renomada Via-Sacra o Doutor Plinio. Excetuando-se os franceses, poderíamos parafraseá-lo: “O que sabe o geral dos homens sobre Lisieux, senão que era a terra de Santa Teresinha”? Agrade ou não a Mme. Roudy, ela é a grande, a imensa glória de sua cidade!
“De Theresia nunquam satis”
Afirma-se de Maria, a Virgem Santíssima, a Mãe do Verbo Encarnado: “de Maria nunquam satis”. De Nossa Senhora jamais alguém fica saciado.
Ora, logo que uma alma se torna devota da contagiante Santa Teresinha, uma sede incontenível faz com que nada mais a sacie. Ela sempre quer saber mais, conhecer mais elementos de sua vida, os menores detalhes atraem outros, sem jamais saciar essa alma.
Os livros e as pesquisas sobre sua vida e obra multiplicam-se e sucedem-se a uma cadência sem esmorecimento. Recentemente a livraria do Carmelo de Lisieux foi grandemente ampliada. Não há o que baste. Por isso, à uma, dizem os tereseólogos, os especialistas daquela que, em vida, foi “desconhecida”: “de Theresia nunquam satis!”
Se de Nossa Senhora se pode dizer que quase não há igreja na face da Terra que não tenha dEla um altar, também de Santa Teresinha — observava o Fundador da TFP — é difícil encontrar uma igreja sem um altar ou, pelo menos, uma imagem a ela dedicados.
“Para quem é esta festa?”
Incontáveis pressentimentos sobre sua missão futura — por que não dizer profecias? — pontuam a vida de Santa Teresinha. Um dos mais impressionantes, recolheu-o sua fiel discípula, irmã Maria da Trindade.
No dia da trasladação de suas relíquias do cemitério de Lisieux para o Carmelo, a 26 de março de 1923 — por ocasião de sua beatificação — a referida religiosa, cheia de estupor, bruscamente lembra-se do sonho que Santa Teresinha lhe narrara em 1896, um ano antes de sua morte:
“Ontem à noite, durante a hora do silêncio, pensava em minha morte próxima; e cochilei um instante. Nesse estado de meio sono, encontrava-me num campo que parecia um cemitério: as aubépines estavam em flor, os pássaros cantavam, via grande número de pessoas em festa. Era como um dia de triunfo! E me perguntava: Mas o que é isto? Para quem é esta festa? No entanto, não se trata de um enterro...‘ Apesar de tudo, pressentia que se tratava mesmo de mim. Este sonho me parece bem misterioso e não posso deixar de pensar que, cedo ou tarde, conheceremos seu significado” (17).
1997 celebra o centenário desse mistério...
Caio Vidigal Xavier da Silveira
Revista Cotolicismo
1. Sur les pas de Thérèse, Pe. Descouvemont, OEIL, Paris, 1983, pg.123.
2. “Histoire d une Vie”, Guy Gaucher, Cerf, Paris, 1995, p. 208.
3. Pio XI, in Guy Gaucher, op. cit. pg. 229.
4. Pio XI, Discurso aos peregrinos franceses em 18 de maio de 1925, in “Nouvelle édition du centenaire. Derniers entretiens”, Cerf/DDB, Paris, 1992, p. 40.
5. Fala-se muito de sua possível elevação à dignidade de Doutora da Igreja. É voz corrente que isto ocorreria, ainda este ano, por ocasião da próxima ida de Joao Paulo II à França (ver mais informações em “Sainte Thérèse de Lisieux”, éditions du Signe, 1994, pg. 43).
6. São Pio X, em 15 de março de 1907, in Guy Gaucher, op. cit. p. 225.
7. “Thérèse et Lisieux”, Pe. Descouvemont, Cerf, Paris, 1991, p. 322.
8. “Nouvelle édition du centenaire. Derniers entretiens”, Cerf/DDB, Paris, 1992, p. 650.
9.”Une novice de Ste Thérèse”, Cerf, Paris, 1985, p. 155.
10. “Le pèlerinage de Lisieux hier et aujourd hui”, Pe. Descouvement, Les Orphelins Apprentis d Auteuil, Paris, 1989, 4e de couverture.
11. “A Urna do Brasil”, Pe. Henrique Rubillon s.j., Rio de Janeiro, 1924.
12. A entrada no recinto do Carmelo, de clausura papal, é estritamente vedada, sem autorização expressa do Bispo de Bayeux e Lisieux.
13. Carnet jaune, Mère Agnès de Jésus, 17 juillet in “Nouvelle édition du centenaire, Derniers entretiens”, Cerf/DDB, Paris, 1992.
14. “Procès de béatification et de canonisation - I : Procès informatif ordinaire”, Roma, 1973, pg. 561.
15. “Lumières sur Ste Thérèse de l Enfant Jésus et la famille Martin”, Abbé André Deroo, Téqui, Paris, 1974, p. 64.
16. Guy Gaucher, op. cit. p. 78.
17. “Une novice de sainte Thérèse”, op. cit. pg. 80.
http://alexandrinabalasar.free.fr/alexandrina_e_santa_teresinha.htm
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