sábado, 23 de novembro de 2024

Santa Felicidade e seus sete filhos também mártires (23/11)

Santa Felicidade de Roma
 (101-165)
[Foto de Wolfgang Sauber –
Obra do próprio,
CC BY-SA 3.0, Wikipedia]
 
Os senhores lembram aquela narração do martírio de um bispo espanhol na revolução de 1935, um fato heroico edificante, e eu mostrei como aquele narrador adocicava os fatos. E para mostrar como a narração de um fato heroico deve ser feita sem adocicamento, eu me propus a fazer a uma leitura de um martírio relatado pela Acta Martirum. E expliquei sumariamente aos senhores o que era a Acta Martirum: são os anais dos martírios da Igreja redigidos por analistas da Igreja primitiva e feitos com varonilidade e a sobriedade que representa a conjugação do espírito romano, com aquilo que valia incomparavelmente mais do que o espírito romano, que é o espírito católico. Tenho aqui o trecho de uma homilia de São Gregório Magno no dia do natalício de Santa Felicidade. Ela foi martirizada com seus sete filhos sob Antonino Pio, no século II. O trecho é da B.A.C. [coleção “Biblioteca de Autores Cristianos”], pg. 298: “Para confirmar essa doutrina, vem muito a propósito a bem-aventurada Felicidade. Considerai, irmãos amadíssimos, num coração feminino um valor varonil”. Os senhores já estão vendo como a entrada do tema é diferente daquela ficha logo de começo. Lembram-se daquela ficha dulçurosa: “o pobre do bispo que estava no cárcere e que cuidava da dor de cabeça de todo mundo…” Aqui é o contrário. Já vai assim: “Considerei, irmãos amadíssimos, num coração feminino um valor varonil. Ante a morte, esteve impávida. Temeu perder em seus filhos a luz da verdade, se não os tivesse perdido”. A frase não está muito ao gosto da geração nova. A frase quer dizer o seguinte: que ela, diante da possibilidade de os filhos serem martirizados também, mais temeu que eles perdessem a fé diante do medo, do que morressem. Os senhores estão vendo também o voo do pensamento. “Chamarei, pois, essa mulher de mártir? É mais do que mártir, pois chamados ante sua presença seus sete maiores bens – que são seus sete filhos – ela morreu esse mesmo número de vezes”. Quer dizer, como de cada vez foi chamado um filho para se entregar, ela morreu com cada filho. “Contemplou, como mãe, a morte de seus filhos, entre dolorida e impávida…” Quer dizer, sem nenhum pavor. “…e à dor da natureza aplicou o gozo da esperança”. Em outros termos, tinha a dor da natureza, porque os filhos foram mortos um a um diante de si. Então, diz São Gregório, que ela sufocou essa dor da natureza pondo, por cima, o valor da esperança cristã. Quer dizer, a certeza de que os filhos iam morrendo e iam indo para o Céu. De maneira que com isso ela venceu a dor da natureza. “Temeu que vivessem e se alegrou que morressem”. Vejam que lindo pensamento: porque eles viveriam apóstatas e no Céu iam ser santos, então, temeu que vivessem e se alegrou que eles morressem. “Desejou não deixar nenhum sobrevivente, por temor de o não ter logo por companheiro”. Ela ia ser morta logo depois. Então, pensava o seguinte: Oxalá nenhum sobreviva, porque todos vão ser meus companheiros no Céu. É claro que o contrário também está insinuado, quer dizer: se meus filhos ficarem na terra é porque apostataram, se perderam, não quero! “Mas que nenhum de vós, irmãos, imagine que, vendo morrer seus filhos, o carinho carnal não acelerou o pulsar de seu coração, pois não era possível contemplar sem dor a morte dos filhos, que sabia ser de sua carne”. Os senhores estão vendo o equilíbrio moral que há nessa atitude: porque nos causa enlevo uma mãe que, com tanta esperança do Céu, vê morrer seus filhos. Mas, de outro lado, há qualquer coisa nas entranhas maternas, que nos causaria horror de ver que elas não se comovem diante da morte dos filhos. São Gregório sabe mostrar esse prodígio de equilíbrio que é a santidade católica como se faz: de um lado, o coração pulsa, porque a mãe vê o filho morrer; de outro lado, a alegria da católica vibra, porque a mãe vê o filho ir para o Céu. E a mãe vê que chega o momento dela mesma morrer e ir para o Céu com seus filhos. Os senhores estão vendo com que alta elevação e com que alto equilíbrio isto é tratado! “Mas havia dentro dela uma força de amor capaz de vencer a dor da carne”. Era a força do amor de Deus que a tornava capaz de vencer a dor da carne. “Amou Felicidade a seus filhos segundo a carne, mas, por amor da pátria celeste, quis também que morressem diante de si aqueles mesmos a quem amava. Ela recebeu os ferimentos de todos, mas ela também se multiplicou em todos os que entraram no reino do Céu”. Isto é um lindo pensamento! Cada ferimento que um filho levava, ela levava em si pela dor. Mas, por outro lado, era ela que tinha gerado aquelas almas, ela que as tinha formado para o Céu, ela, cuja presença era fonte de perseverança daquelas crianças; cada vez que uma criança entrava no Céu, ela entrava com aquela criança. Os senhores estão vendo como isso é diferente daquele nhã-nhã-nhã que vimos outro dia com aquela ficha antes mencionada do bispo espanhol martirizado em 1936. É altamente pensado, teologicamente dito com grande eloquência. “Com razão, pois, chamo a essa mulher mais do que mártir, pois morta pelo desejo em cada um dos seus filhos, alcançando múltiplo martírio, ela venceu a própria palma do martírio”. Dir-se-ia, em linguagem de hoje, que ela bateu o recorde do martírio, porque foi sete vezes mártir nos seus sete filhos. É o pensamento que ele exprime aqui. “Diz-se dos antigos que tinham por costume que, entre eles, quem houvesse sido cônsul, ocupava posto de honra conforme a ordem do tempo. Mas se alguém, posteriormente, vinha a sê-lo pela segunda ou ainda terceira vez, sobrepujava em glória e honra aos que haviam sido uma vez somente. Venceu, pois, aos mártires a bem-aventurada Felicidade, que morreu tantas vezes quantos foram os filhos que antes dela morreram por Cristo, pois era tão grande seu amor por Deus, que somente sua própria morte não a satisfez”. O pensamento é muito bonito e tirado do protocolo romano. O consulado era uma magistratura romana um pouco análoga, com mais dignidade, ao que seria uma presidência da república hoje em dia. Então, como hoje os ex-presidentes da república gozam de certas honras durante a vida inteira, também quem tinha sido cônsul gozava de certas honras sobre os outros cidadãos durante a vida inteira. Mas quem tinha sido cônsul duas ou três vezes gozava de honras maiores do que quem tinha sido uma só vez. Então, ele afirma que o mesmo se deu com Santa Felicidade. Ela não foi mártir uma vez só, mas sete vezes. De maneira que teve sete vezes as honras do martírio, como alguém que tivesse sido sete vezes cônsul teria sete vezes a honra do consulado. E assim São Gregório Magno termina o comentário. Lamento que a necessidade de traduzir isso numa linguagem mais contemporânea nos prive do sabor direto da oratória de São Gregório. Mas, em todo caso, os senhores têm aí pensamentos de grande voo sobre um fato de grande envergadura. Dá-nos o quê? O que deve ser uma das notas características de nossa formação: o amor à grandeza. O mundo de hoje é igualitário e detesta tudo quanto é grandeza; com todas suas energias tende para o que é vulgar, para o que é chulo e até para o que é corrupto, e antipatiza com o que representa a afirmação da grandeza. Uma grandeza egoística, existente só para proveito do grande, isso não é uma grandeza católica. Mas a que existe para a glória de Deus, que é o modelo e o autor de toda grandeza, conduzida para servir à causa de Deus e não para uma fruição própria, todo homem com a alma bem feita e verdadeiramente católica, deve amar. É uma grandeza sacral, não é a mera grandeza do dinheiro e da matéria, que é grande só porque tem grandes sacos de milhões. Isto não vale nada! Mas, a grandeza do espírito, do direito, da virtude, da tradição, da história, essa é a verdadeira grandeza. Essa é imagem da grandeza divina. E toda a alma modelada pelo espírito católico deve gostar dessa grandeza. A qual, entretanto, é uma grandeza sacrifical, porque aquele que a possui – se é católico – está num estado contínuo de holocausto, continuamente fazendo um esforço para não fruir essa grandeza, não se apegar a ela egoisticamente, para a ter apenas com a finalidade de servir a Deus Nosso Senhor, a Nossa Senhora, à Santa Igreja Católica e pronto a largá-la quando for necessário. E preferindo até – se tal for a vontade de Deus – largá-la do que tê-la, porque, como diz Santo Inácio de Loyola, em igualdade de condições, devemos preferir a pobreza à riqueza, ser atacados e perseguidos a ser glorificados, ser doentes a ser saudáveis e devemos preferir ser pequenos a ser grandes. Quando a pessoa conduz a grandeza por essa forma e dá numa grandeza sacral e sacrificada, temos a verdadeira imagem da grandeza do Cordeiro de Deus, Nosso Senhor Jesus Cristo, que foi a Grandeza e que devemos seguir e devemos imitar. Então, é para esta visualização da grandeza como valor metafísico e sobrenatural que conduz essa meditação sobre o martírio de Santa Felicidade. É um heroísmo enorme, uma grandeza de alma extraordinária, cantada por um homem de um talento grandioso, todo ele posto ao serviço da causa católica, como foi o de São Gregório Magno. E os senhores têm, então, a grandeza cantando os elogios da grandeza, pela boca de São Gregório Magno. E aí os senhores têm um desses aspectos magníficos da Igreja Católica, a qual é isto mesmo: uma Rainha cheia de grandeza e por mais que o progressismo procure desfigurá-la numa proletária demagoga, Ela nunca o será. E na grandeza sacral, bondosa da Igreja e numa contínua efusão do Sangue de Cristo que a Igreja faz na Missa, vemos a grandeza sacral e sacrificial ou de holocausto da Igreja Católica. 
A D V E R T Ê N C I A 
O presente texto é adaptação de transcrição de gravação de conferência do Prof. Plinio Corrêa de Oliveira a sócios e cooperadores da TFP, mantendo portanto o estilo verbal, e não foi revisto pelo autor. Se o Prof. Plinio Corrêa de Oliveira estivesse entre nós, certamente pediria que se colocasse explícita menção a sua filial disposição de retificar qualquer discrepância em relação ao Magistério da Igreja. É o que fazemos aqui constar, com suas próprias palavras, como homenagem a tão belo e constante estado de espírito: “Católico apostólico romano, o autor deste texto se submete com filial ardor ao ensinamento tradicional da Santa Igreja. Se, no entanto, por lapso, algo nele ocorra que não esteja conforme àquele ensinamento, desde já e categoricamente o rejeita”. As palavras “Revolução” e “Contra-Revolução”, são aqui empregadas no sentido que lhes dá o Prof. Plínio Corrêa de Oliveira em seu livro “Revolução e Contra-Revolução“, cuja primeira edição foi publicada no Nº 100 de “Catolicismo”, em abril de 1959. 

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