Nascido em Provença, de uma família distinguida, Ambrósio Autpert — segundo seu tardio biógrafo João — foi à corte do rei franco Pepino o Breve, onde, além do cargo de oficial, desenvolveu de alguma forma também o de preceptor do futuro imperador Carlos Magno. Provavelmente no séquito do Papa Estêvão II, que em 753-54 havia ido à corte franca, Autpert chegou à Itália e pôde visitar a famosa abadia beneditina de São Vicente, nas fontes do Volturno, no ducado de Benevento. Fundada a princípios daquele século pelos três frades beneventinos Paldo, Tato e Taso, a abadia era conhecida como oásis de cultura clássica e cristã. Pouco depois de sua visita, Ambrósio Autpert decidiu abraçar a vida religiosa e entrou naquele mosteiro, onde pôde formar-se de modo adequado, sobretudo no campo da teologia e da espiritualid ade, segundo a tradição dos Padres. Por volta do ano 761, foi ordenado sacerdote e, em 4 de outubro de 777, foi eleito abade com o apoio dos monges francos, enquanto lhe eram contrários os lombardos, favoráveis ao lombardo Poton. A tensão de fundo nacionalista não se acalmou nos meses seguintes, com a consequência de que Autpert, um ano depois, em 778, pensou em renunciar e ir com alguns monges francos a Spoleto, onde podia contar com a proteção e Carlos Magno. Com isso, contudo, as dissensões no mosteiro de São Vicente não cessaram, e algum tempos depois, quando pela morte do abade que substituiu Autpert foi eleito precisamente Poton (por volta de 782), o conflito voltou a acender-se e se chegou à denúncia do novo abade diante de Carlos Magno. Este enviou os contendentes ao tribunal do pontífice, que os convocou em Roma. Chamou também como testemunha Autpert, que, contudo, durante a viagem morreu repentinamente, talvez assassinado, em 30 de janeiro de 784.
Ambrósio Autpert foi monge e abade em uma época marcada por fortes tensões políticas, que repercutiam também na vida interna dos mosteiros. Disso temos frequentes ecos em seus escritos. Ele denuncia, por exemplo, a contradição entre a aparência esplêndida dos mosteiros e a tibieza dos monges: certamente, com esta crítica tinha em mente a sua própria abadia. Para ela escreveu a Vida dos três fundadores, com a clara intenção de oferecer à nova geração de monges um termo de referência com o qual confrontar-se. Um objetivo similar tinha também o pequeno tratado ascético Conflictus vitiorum et virtutum («Conflito entre os vícios e as virtudes»), que teve grande êxito na Idade Média e que foi publicado em 1473 em Utrecht, sob o nome de Gregório Magno, e um ano depois em Estrasburgo, sob o nome de Santo Agostinho. Nele, Ambrósio Autpert pretendia admoestar os monges de modo concreto sobre como enfrentar o combate espiritual dia a dia. De modo significativo, aplica a afirmação de 2 Timóteo 3, 12 — «Todos os que querem viver piedosamente em Cristo Jesus sofrerão perseguições» — já não à perseguição externa, mas ao assalto que o cristão deve enfrentar dentro de si por parte das forças do mal. Apresentam-se em uma espécie de disputa 24 duplas de combatentes: cada vício tenta atrair a alma com sutis raciocínios, enquanto a virtude respectiva rebate estas insinuações servindo-se sobretudo de palavras da Escritura.
Neste tratado sobre o conflito entre vícios e virtudes, Autpert contrapõe à cupiditas (a cobiça) o contemptus mundi (o desprezo do mundo), que se converte em uma figura importante na espiritualidade dos monges. Este desprezo do mundo não é um desprezo da criação, da beleza e da bondade da criação e do Criador, mas um desprezo da falsa visão do mundo apresentada e insinuada pela cobiça. Esta insinua que o «ter» seria o sumo valor de nosso ser, de nosso viver no mundo, parecendo importante. E assim falsifica a criação do mundo e destrói o mundo. Autpert observa também que a avidez de lucros dos ricos e dos poderosos da sociedade de seu tempo existe também dentro das almas dos monges, e escreveu por isso um tratado titulado De cupiditate, no qual, com o apóstolo Paulo, denuncia desde o princípio a cobiça como a raiz de todos os males. Escreve: «Desde o solo da terra, diversos espinhos agudos brotam de várias raízes; no coração do homem, ao contrário, os espinhos de todos os vícios procedem de uma única raiz, a cobiça» (De cupiditate 1: CCCM 27B, p. 963). Relevo este que, à luz da presente crise económica mundial, revela toda a sua actualidade. Vemos que precisamente esta crise nasceu a partir desta raiz da cobiça. Ambrósio imagina a objecção que os ricos e os poderosos poderão fazer: mas nós não somos monges, para nós não valem certas exigências ascéticas. E ele responde: «É verdade o que dizeis, mas também para vós, à maneira de vossa vida e na medida de vossas forças, vale o caminho estreito, porque o Senhor propôs só duas portas e duas vias (ou seja, a porta estreita e a larga, a via custosa e a cómoda); não indicou uma terceira porta ou uma terceira via» (l.c., p.978). Ele vê claramente que os modos de viver são muito diferentes. Mas também, para o homem deste mundo, também para o rico, vale o dever de combater contra a cobiça, contra o desejo de possuir, de aparecer, contra o falso conceito de liberdade como faculdade de dispor de tudo segundo o próprio arbítrio. Também o rico deve encontrar o autêntico caminho da verdade, do amor e, assim, da vida recta. Portanto, Autpert, como prudente pastor de almas, sabe dizer, ao final de sua pregação penitencial, uma palavra de consolo: «Falei não contra os ávidos, mas contra a avidez; não contra a natureza, mas contra o vício» (l.c., p.981).
A obra mais importante de Ambrósio Autpert é certamente seu comentário, em dez livros, do Apocalipse: este constitui, depois de séculos, o primeiro comentário amplo no mundo latino ao último livro da Sagrada Escritura. Esta obra foi fruto de um trabalho de muitos anos, desenvolvido em duas etapas, entre 758 e 767, portanto, antes de sua eleição como abade. No prólogo, indica com precisão suas fontes, coisa que não era normal em absoluto na Idade Média. Através de sua fonte talvez mais significativa, o comentário do bispo Primasio Adrumetano, redigido na metade do século VI, Autpert entra em contacto com a interpretação do Apocalipse que havia deixado o africano Ticônio, que havia vivido uma geração antes de Santo Agostinho. Não era católico; pertencia à igreja cismática donatista; era, contudo, um grande teólogo. Neste comentário seu, viu sobretudo reflectido no Apocalipse o mistério da Igreja. Ticónio havia chegado à convicção de que a Igreja era um corpo partido em dois: uma parte, diz ele, pertence a Cristo, mas há outra parte da Igreja que pertence ao diabo. Agostinho leu este comentário e tirou proveito dele, mas sublinhou fortemente que a Igreja está nas mãos de Cristo, continua sendo seu Corpo, formando com Ele um só sujeito, partícipe da mediação da graça. Sublinha portanto que a Igreja não pode ser nunca separada de Jesus Cristo. Em sua leitura do Apocalipse, similar à de Ticónio, Autpert não se interessa tanto pela segunda vinda de Cristo ao final dos tempos, mas às consequências que se derivam de sua primeira vinda para a Igreja do presente, a encarnação no seio da Virgem Maria. E nos diz uma palavra muito importante: na realidade, Cristo «deve em nós, que somos seu Corpo, quotidianamente nascer, morrer e ressuscitar» (In Apoc. III: CCCM 27, p. 205). No contexto da dimensão mística que pertence a todo cristão, ele considera Maria como modelo da Igreja, modelo para todos nós, porque também em nós e entre nós deve nascer Cristo. Seguindo os Padres, que viam na «mulher vestida de sol»do Ap 12, 1 a imagem da Igreja, Autpert argumenta: «A beata e pia Virgem... diariamente dá a luz novos povos, dos quais se forma o Corpo geral do Mediador. Não é, portanto, surpreendente se ela, em cujo bendito seio a própria Igreja mereceu ser unida à sua Cabeça, representa o tipo da Igreja». Neste sentido, Autpert vê um papel decisivo da Virgem Maria na obra da Redenção (cf. também em suas homilias In purificatione s. Mariae e In adsumptione s. Mariae ). Sua grande veneração e seu profundo amor pela Mãe de Deus lhe inspiram às vezes formulações que de alguma forma antecipam as de São Bernardo e da mística franciscana, sem desviar-se a formas discutíveis de sentimentalismo, porque ele não separa nunca a Maria do mistério da Igreja. Com boa razão, portanto, Ambrósio Autpert é considerado o primeiro grande mariólogo do Ocidente. À piedade que, segundo ele, deve libertar a alma do apego aos prazeres terrenos e transitórios, ele considera que deve unir-se o profundo estudo das ciências sagradas, sobretudo a meditação das Sagradas Escrituras, às quais qualifica de «céu profundo, abismo insondável»(In Apoc. IX). Na bela oração com a qual conclui seu comentário ao Apocalipse, sublinhando a prioridade que em toda busca teológica da verdade corresponde ao amor, dirige-se a Deus com estas palavras:«Quando és escrutado intelectualmente por nós, não és descoberto como és verdadeiramente; quando és amado, és alcançado».
Podemos ver hoje em Ambrósio Autpert uma personalidade vivida em um tempo de forte manipulação política da Igreja, na qual o nacionalismo e o tribalismo haviam desfigurado o rosto da Igreja. Mas ele, em meio a todas estas dificuldades que conhecemos, soube descobrir o verdadeiro rosto da Igreja em Maria, nos santos. E soube assim entender o que quer dizer ser católico, ser cristão, viver da Palavra de Deus, entrar neste abismo e assim viver o mistério da Mãe de Deus: dar novamente vida à Palavra de Deus, oferecer à Palavra de Deus a própria carne no tempo presente. E com todo seu conhecimento teológico, a profundidade de sua ciência, Autpert soube entender que com a simples busca teológica Deus não pode ser conhecido realmente como é. Só o amor o alcança. Escutemos esta mensagem e oremos ao Senhor para que nos ajude a viver o mistério da Igreja hoje, neste nosso tempo.
Catequese de Bento XVI: Audiência geral de 22 de abril de 2009.
FONTE : www.vatican.va
http://alexandrina.balasar.free.fr/
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