domingo, 8 de novembro de 2015

JOÃO DUNS ESCOTO Filósofo, Teólogo, Beato 1266-1308

Hoje eu gostaria de falar sobre um notável pensador do Ocidente cristão: João Escoto Erígena, cujas origens são incertas. Ele procedia certamente da Irlanda, onde havia nascido no começo do século IX, mas não sabemos quando deixou sua ilha para atravessar o Canal da Mancha e começar assim a fazer parte plenamente desse mundo cultural que estava renascendo em torno dos carolíngios, em particular de Carlos o Calvo, na França do século IX. Assim como não conhecemos a data exacta do seu nascimento, tampouco conhecemos a de sua morte que, segundo os especialistas, deve ter sido por volta do ano 870.
João Duns Escoto tinha uma cultura patrística, tanto grega como latina, de primeira mão: conhecia directamente os escritos dos padres latinos e gregos. Conhecia bem, entre outras, as obras de Agostinho, Ambrósio, Gregório Magno, grandes padres do Ocidente cristão, mas conhecia também o pensamento de Orígenes, de Gregório de Nissa, de João Crisóstomo e de outros padres do Oriente igualmente importantes. Era um homem excepcional, que naquela época dominava também o grego. Demonstrou uma atenção sumamente particular por São Máximo o Confessor, e sobretudo por Dionísio Areopagita. Sob este pseudónimo, esconde-se um escritor eclesiástico do século V, da Síria, mas assim como todos da Idade Média, João Escoto Erígena estava certo de que este autor era um discípulo direto de São Paulo, de quem se fala nos Actos dos Apóstolos (17, 34). Escoto Erígena, convencido desta apostolicidade dos escritos de Dionísio, qualificava-o de “autor divino” por excelência; seus escritos foram, portanto, uma fonte eminente do seu pensamento. João Escoto traduziu suas obras para o latim.
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Os grandes teólogos medievais, como São Boaventura, conheceram as obras de Dionísio através desta tradução. Ele se dedicou durante a vida toda a aprofundar e desenvolver seu pensamento, recorrendo a estes escritos, até o ponto de que ainda hoje em algumas ocasiões pode ser difícil distinguir quando nos encontramos com o pensamento de Escoto Erígena e quando ele não faz mais do que propor o pensamento do Pseudo-Dionísio.
Na verdade, o trabalho teológico de João Escoto não teve muita sorte. O final da era carolíngia fez que se esquecessem de suas obras e uma censura por parte da autoridade eclesiástica criou sombras sobre sua figura. João Escoto representa um platonismo radical, que às vezes parece aproximar-se de uma visão panteísta, ainda que suas intenções pessoas subjectivas tenham sido sempre ortodoxas. Até hoje chegaram algumas obras de João Escoto Erígena, entre as quais merecem ser recordadas, em particular, o tratado “Sobre a divisão da natureza” e as “Exposições sobre a hierarquia celeste de São Dionísio”. Nelas, ele desenvolve estimulantes reflexões teológicas e espirituais, que poderiam sugerir interessantes aprofundamentos inclusive para teólogos contemporâneos. Refiro-me, por exemplo, ao que escreve sobre o dever de exercer um discernimento apropriado sobre o que representa como auctoritas vera (a verdadeira autoridade, N. do T.), ou sobre o compromisso de continuar buscando a verdade até que não se alcance uma experiência da adoração silenciosa de Deus.
Nosso autor diz: “Salus nostra ex fide inchoat”: nossa salvação começa com a fé, isto é, não podemos falar de Deus partindo das nossas invenções, mas do que o próprio Deus diz sobre si mesmo nas Sagradas Escrituras. Dado que Deus só diz a verdade, Escoto Erígena está convencido de que a autoridade e a razão nunca podem estar em contraposição. Ele está certo de que a verdadeira religião e a verdadeira filosofia coincidem. A partir desta perspectiva, escreve: “Qualquer tipo de autoridade que não estiver confirmada por uma verdadeira razão, deveria ser considerada como fraca... Só é verdadeira autoridade aquela que coincide com a verdade descoberta em virtude da razão, ainda que se trate de uma autoridade recomendada e transmitida para utilidade das posteriores gerações pelos santos padres” (I, PL 122, col 513BC).
Portanto, adverte: “Que nenhuma autoridade o atemorize ou o distraia do que lhe faz compreender a persuasão obtida graças a uma recta contemplação racional. De fato, a autêntica autoridade não contradiz nunca a reta razão, e esta última nunca contradiz uma verdadeira autoridade. Uma e outra procedem sem dúvida da mesma fonte, que é a sabedoria divina” (I, PL 122, col 511B). Vemos aqui uma valente afirmação do valor da razão, fundada sobre a certeza de que a verdadeira autoridade é racionável, pois Deus é a razão criadora.
A própria Escritura não se livra, segundo Erígena, da necessidade de aplicar o mesmo critério de discernimento. A Escritura, de fato, afirma o teólogo irlandês, voltando a expor uma reflexão já presente em João Crisóstomo, não teria sido necessária se o homem não tivesse pecado. Portanto, é preciso deduzir que a Escritura foi dada por Deus com uma intenção pedagógica e por condescendência para que o homem pudesse recordar tudo o que havia sido impresso em seu coração desde o momento de sua criação “à imagem e semelhança de Deus” (cf. Génesis 1, 26) e que a queda original lhe havia feito esquecer. Erígena escreve nas Expositiones: “O homem não foi criado para a Escritura, da que não teria tido necessidade se não houvesse pecado, mas sim a Escritura – tecida de doutrina e símbolos – foi doada ao homem. Graças a esta, de fato, nossa natureza racional pode introduzir-se nos segredos da autêntica contemplação pura de Deus” (II, PL 122, col 146C). A palavra da Sagrada Escritura purifica nossa razão um pouco cega e nos ajuda a voltar à lembrança daquilo que nós, enquanto imagem de Deus, temos gravado no coração, vulnerado infelizmente pelo pecado.
Daqui derivam algumas consequências hermenêuticas sobre a maneira de interpretar a Escritura, que podem indicar ainda hoje o caminho justo para uma correcta leitura da Sagrada Escritura. Trata-se, de fato, de descobrir o sentido escondido no texto sagrado e isso supõe um exercício particular interior graças ao qual a razão se abre ao caminho seguro rumo à verdade. Este exercício consiste em cultivar uma constante disponibilidade para a conversão. Para chegar em profundidade à visão do texto, é necessário avançar simultaneamente na conversão do coração e na análise conceitual da página bíblica, seja de carácter cósmico, histórico ou doutrinal. Somente graças à constante purificação, tanto dos olhos do coração como dos olhos da mente, pode-se conquistar a compreensão exacta.
Este caminho árduo, exigente e entusiasmante, repleto de contínuas conquistas e relativizações do saber humano, conduz a criatura inteligente até o limiar do Mistério divino, em que todas as noções constatam sua própria fraqueza e incapacidade e levam, portanto, a ir além ― com a simples força livre e doce da verdade ― de tudo o que é alcançado continuamente. O reconhecimento adorador e silencioso do Mistério, que desemboca na comunhão unificadora, revela-se portanto como o único caminho para uma relação com a verdade que seja ao mesmo tempo a mais íntima possível e a mais escrupulosamente respeitosa da alteridade. João Escoto, utilizando também nisso um termo apreciado pela tradição cristã de língua grega, chamou esta experiência à qual tendemos de theosis ou divinização, com afirmações atrevidas, até o ponto de que foi suspeito de cair no panteísmo heterodoxo. De qualquer forma, suscitam intensa emoção textos como o seguinte, no qual, recorrendo à antiga metáfora da fusão do ferro, escreve: “Portanto, como todo ferro incandescente se torna líquido até o ponto de que só parece fogo, e no entanto permanecem distintas as substâncias de um e de outro, da mesma forma é preciso aceitar que, depois do final deste mundo, toda a natureza, tanto a corporal como a incorporal, manifestará só Deus e, no entanto, permanecerá íntegra, de maneira que Deus possa ser, em certo sentido, compreendido apesar de permanecer incompreensível e a própria criatura seja transformada, com maravilha inefável, em Deus” (V, PL 122, col 451B).
Na verdade, todo o pensamento teológico de João Escoto se converte na demonstração mais clara da tentativa de expressar o explicável do inexplicável de Deus, baseando-se unicamente no mistério do Verbo feito carne em Jesus de Nazaré. As numerosas metáforas utilizadas por ele para indicar esta realidade inefável demonstram até que ponto é consciente da absoluta incapacidade dos termos que utilizamos para falar dessas coisas. E, no entanto, permanece esse encanto e essa atmosfera de autêntica experiência mística que de vez em quando se pode quase palpar em seus textos. Basta citar, como prova, uma página do livro De divisione naturae, que toca profundamente nosso espírito de crentes do século 21: “Só se pode desejar ― escreve ― a alegria da verdade, que é Cristo, e só se pode evitar a ausência d’Ele. É preciso considerar que esta é a única causa de total e eterna tristeza. Tire Cristo de mim e não me restará nenhum bem e não há nada que me aterrorizará tanto como sua ausência. O pior tormento de uma criatura racional são as privações e a ausência d’Ele” (V, PL 122, col 989a). São palavras das quais podemos nos apropriar, traduzindo-as em oração Àquele que constitui também o desejo do nosso coração[1].
FONTE: ZENIT.org
[1] Audiência geral da quarta-feira, 10 de junho de 2009, do Papa Bento XVI.

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