No ano de 910, em sua propriedade localizada nos arredores da pequena Cluny (Saône-et-Loire, França), na companhia de São Bernon, Guilherme o Piedoso, Duque da Aquitânia, fundava a abadia que teria preponderante papel na reforma religiosa de seu tempo.Contudo, sua fundação é atribuída a Santo Odon, porquanto foi ele o religioso designado por São Bernon para levar a obra avante, selecionar e formar seus discípulos. Desse modo, por mais de um século, Cluny continuaria a ser dirigida por essa linhagem de discípulos, os quais deram origem à famosa série dos “Santos Abades de Cluny”. Esta começou com seu sucessor direto, Beato Aimar, substituído por São Maiolo, seguindo-se depois Santo Odilon, para culminar com aquele que talvez tenha sido o maior de todos: Santo Hugo, que levou Cluny a seu apogeu. É de Santo Odilon, terceiro sucessor do fundador e “encarnação viva, no seio da Igreja, daquele espírito de reforma que o fez um dos homens mais ilustres do milênio”,1 que vamos tratar.
Papa Urbano II consagra o altar de Cluny |
A vida de Santo Odilon foi escrita por São Pedro Damião, Cardeal e Bispo de Óstia, a pedido de Santo Hugo, sucessor de Santo Odilon no governo de Cluny. Portanto, é um Santo escrevendo a vida de outro. Os hagiógrafos posteriores baseiam-se nesta vida e na de Lotsaldo, monge de Cluny que conviveu muito tempo com Santo Odilon, acompanhando-o em várias de suas inúmeras viagens.
Milagrosamente curado por Nossa Senhora
Odilon nasceu no ano de 962, de pais piedosos pertencentes à nobreza de Auvergne. Beraldo, seu pai, era senhor de Mercoeur, mas por sua excepcional coragem nas armas, probidade e sinceridade consumadas, a voz popular acrescentou-lhe o cognome de “Grande”. A mãe chamava-se Gerberge. Odilon foi o terceiro dos dez filhos do casal.
Quando ainda muito pequeno Odilon ficou paralisado das pernas, depois de grave doença que pôs em risco sua vida. Um dia em que seu pai viajava com toda a família, parou para descanso numa pequena aldeia do caminho. Em dado momento, a governanta de Odilon, deixando-o sozinho à entrada da igreja enquanto foi comprar algo, o menino — com apenas três anos de idade — arrastou-se então para dentro da igreja. Chegando ao altar de Nossa Senhora, pendurou-se na toalha, tentando levantar-se. Nesse momento, sentiu uma força misteriosa e pôs-se de pé. Quando a governanta, aflita, o encontrou na igreja, ele estava correndo em torno do altar da Virgem. Desde esse momento Odilon teve particular devoção a sua celeste benfeitora, devoção essa que continuou até o fim de seus dias.
Mais tarde Odilon gostava de voltar em peregrinação a essa igreja. Em uma dessas ocasiões, ele fez a Nossa Senhora a seguinte oração: “Ó benigníssima Virgem Maria! Desde hoje e para sempre me consagro a vosso serviço. Socorrei-me, nas minhas necessidades, ó poderosíssima Medianeira e Advogada dos homens! Quanto tenho, dou a Vós, e com gosto me entrego a Vós por inteiro, para ser vosso servo e escravo”.2
Santo Odilon foi um dos primeiros a praticar a sagrada escravidão a Nossa Senhora, que depois São Luís Maria Grignion de Montfort tornaria tão conhecida.
A esse respeito, comenta Plinio Corrêa de Oliveira: “Para quem fizesse uma história superior da Igreja Católica, seria muito bonito compor essa genealogia das almas que ao longo da História se tem consagrado por essa forma a Nossa Senhora. E que constituem, na vida tantas vezes secular da Igreja, uma espécie de filão que vem desde o profeta Elias até nossos dias, e que são de algum modo o que há de mais vivo, o coração que pulsa dentro da Igreja Católica. É para nós uma alegria ver que o grande Santo Odilon, que está na raiz de todos os esplendores da Idade Média, pertencia a essa gloriosa família de almas, da qual nós desejamos ser continuadores, embora apagados”.3
Pouco se sabe da juventude do santo, a não ser que ele a passou no estudo das ciências e prática da virtude. Quando tinha 26 anos, recebeu a tonsura clerical, e pouco depois entrou para a Ordem de Cluny, governada então por São Maiolo.
Abade de Cluny, conselheiro de imperadores
Abadia de Cluny, fundada em 910, que teria preponderante papel na reforma religiosa de seu tempo |
O fervor com que Odilon levava a vida monástica era tal que, em 991, com apenas um ano de noviciado, ele foi admitido a professar na Ordem. No mesmo ano São Maiolo o escolheu para seu vigário. Três anos depois, adoecendo gravemente, o santo, com a aprovação unânime dos monges, nomeou Odilon seu sucessor. Ordenado então sacerdote, apesar de sua resistência, teve que se sentar no trono abacial.
Os biógrafos do santo abade assim o descrevem: “Santo Odilon era magro e pálido, cabelos escuros; mas seus olhos tinham um brilho prodigioso, quase terrível. O som de sua voz vibrava como um sino longínquo chamando os fiéis à oração. Suas palavras eram ao mesmo tempo doces e fortes, e penetravam os corações”.4 “Sua alma estava dotada de uma mobilidade extraordinária, na qual se refletia a vivacidade de suas expressões. Tinha uma voz sonora e viril, e quando falava, um relâmpago passava de sua inteligência a seus olhos. Os traços característicos de seu coração eram uma profunda humildade, que o levava a chamar-se o último e mais desprezível dos irmãos de Cluny, e uma doçura inefável que lhe valeu o nome de Pai muito clemente e misericordioso”.5 Mas esse santo tão doce e compassivo odiava a adulação e a mentira, e castigava severamente os falsos irmãos. “Tinha, como diz um poeta, o desprezo do desprezo, o ódio do ódio, e o amor do amor”.6
Santo Odilon concorreu muito para o progresso da Ordem. Desde o início pôs singular empenho na reforma da regra de São Bento, então seguida por Cluny, estabelecendo como caráter definitivo um código denominado “Costumes de Cluny”, o qual deveria ser seguido pelos inúmeros mosteiros que estavam sob a sua jurisdição.
Muito solicitado, empreendeu viagens frequentes pela França, Suíça, Alemanha e Itália. E enviou discípulos a várias províncias da França e da Espanha, para reformar a vida monástica então decadente.
“Fino diplomata, com uma diplomacia que brotava do espírito do Evangelho, Odilon pôde pôr em suas empresas toda a força do poder humano. Foi auxiliar dos Papas, correspondente de quase todos os príncipes de seu tempo, conselheiro dos imperadores”.7 A imperatriz Santa Adelaide se recomendava às suas orações.
Exército numerosíssimo e compacto às suas ordens
Túmulos de São Maiolo e Santo Odilon |
Santo Odilon podia contar, em todas as suas obras, com um exército numerosíssimo e compacto. Era a Ordem de Cluny, a que se haviam agregado mais de mil mosteiros e dez mil monges. E ele sabia como utilizá-los.
Foi o que fez, por exemplo, na grande carestia que avassalou o reino da França, provocando grande miséria e sofrimentos. Iniciada em 1030, ela durou três anos, causada pelas chuvas quase contínuas que impediam à lavoura e aos frutos da terra de chegarem à sua maturidade.
A Igreja foi, então, a providência dos infelizes. Os mil mosteiros sob a direção de Odilon estavam abertos a todas as necessidades, e seus dez mil monges dedicaram-se a socorrer as vítimas. Como o mosteiro de Cluny era um dos mais ricos, Santo Odilon usou todos os seus meios para socorrer os famintos. Distribuiu entre os pobres todas as provisões do mosteiro, vendeu inclusive uma coroa de ouro que o imperador Santo Henrique havia dado à igreja de Cluny. Como apesar disso ainda havia necessidade de dinheiro para socorrer os flagelados, ele foi de castelo em castelo, de cidade em cidade, pedindo esmolas para eles.8
56 anos como superior da Ordem de Cluny
A época em que viveu Santo Odilon foi muito conturbada. São Pedro Damião assim se referiu a ela: “As guerras são tão numerosas, que a espada envia mais homens ao sepulcro que a enfermidade. O mundo inteiro parece um mar agitado pela borrasca. As discórdias e as vinganças, como ondas gigantescas, agitam os corações. Mata-se, rouba-se, incendeia-se impunemente e a terra fica reduzida a uma espantosa esterilidade”.9
Por isso Santo Odilon, junto com o Beato Ricardo, abade de São Vanes, obtiveram daqueles homens belicosos que respeitassem uma “trégua de Deus”, isto é, que a partir da tarde da quarta-feira até a manhã da segunda-feira, cessassem toda hostilidade por respeito aos dias da semana em que se realizaram os últimos mistérios da vida de Nosso Senhor Jesus Cristo.10
Um dos inúmeros méritos de Santo Odilon foi o de ter instituído em seus mosteiros um dia para se comemorar as almas do Purgatório, logo depois da festa de Todos os Santos. Naquele dia todos os seus mosteiros aplicariam suas orações e penitências em favor dessas benditas almas que padeciam nesse lugar de purificação.
Cheio de anos e de méritos, Santo Odilon faleceu no dia 1º. de janeiro de 1049, aos 87 anos de idade, 26 dos quais no mundo, cinco no claustro antes de ser abade, e 56 como superior da Ordem de Cluny.
No ano de 1069 abriu-se seu túmulo e o corpo do santo estava incorrupto. Entretanto, durante a nefanda Revolução Francesa, seus restos mortais foram queimados, junto com as preciosas relíquias do tesouro da abadia de Souvigny, onde ele havia sido enterrado.
E-mail para o autor: catolicismo@terra.com.br
Plinio Maria Solimeo
Notas:
1. Fr. Justo Perez de Urbel, O.S.B., Año Cristiano, Ediciones Fax, Madri, 1945, tomo I, p. 17.
2. Edelvives, El Santo de Cada Dia, Editorial Luis Vives, S.A., Saragoça, 1946, tomo I, p. 12.
3. http://www.pliniocorreadeoliveira.info/DIS_SD_721013_santoodilon7.htm
4. Les Petits Bollandistes, Vies des Saints, Bloud et Barral, Libraires-Éditeurs, Paris, 1882, tomo I, p. 40.
5. Urbel, op. cit. p. 18.
6. Id. ib.
7. Urbel, id. ib.
8. Cfr. Les Petits Bollandistes, op. cit. pp. 34-35.
9. Urbel, op. cit. p. 19.
10. Cfr. Les Petits Bollandistes, op. cit. p. 41.
http://catolicismo.com.br/materia/materia.cfm?IDmat=115F42DD-C5D5-2A1A-535BCB61074509CB&mes=Maio2013
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