Ao transfigurar-se no Tabor, Jesus não quis somente fortalecer os apóstolos, mas todos os fiéis - incluindo cada um de nós -, até o fim do mundo.
Verdadeiro Homem
Um dos
principais mistérios de nossa Fé é a encarnação do Verbo. Com
efeito, quem poderia cogitar a possibilidade de uma das Pessoas da
Santíssima Trindade unir sua natureza divina à humana, e - sem
deixar
de
ser verdadeiro Deus - se tornar também verdadeiro Homem? Nunca, pelo
simples raciocínio, nenhum homem - e nem mesmo algum Anjo -
conceberia tal conúbio entre Criador e criatura. Para conhecermos
esse belo e atraente mistério, era necessário que o próprio Deus
no-lo revelasse.
O
Redentor foi radical em assumir a humana condição, dentro da frágil
contingência desta (excluído o pecado, como também qualquer
defeito). Por exemplo, ao escolher as mais modestas circunstâncias
para nascer: a total pobreza, uma gruta, o auge do inverno, tendo
por berço apenas uma manjedoura.
São
inúmeros os episódios do Evangelho nos quais transparece a natureza
humana de Jesus: o ter de fugir para o Egito, levado por Maria e
José, a fim de poupar-se da espada de Herodes; o trabalhar como
humilde carpinteiro, até os 30 anos de idade, evitando chamar a
atenção do povo; o fazer penitência durante 40 dias no deserto,
suportando as agruras de um terrível jejum; o verter sangue no
Jardim das Oliveiras, em meio ao temor e à angústia ante a Paixão; o
externar fraqueza física durante sua flagelação e enquanto carregava
a cruz ao alto do Calvário. Por fim, a sua morte, como a de qualquer
ser humano, e no pior dos suplícios.
Como
diz São Paulo: “Sendo Ele de condição divina, não reteve avidamente
sua condição divina, não se prevaleceu de sua igualdade com Deus,
mas aniquilou-se a si mesmo, assumindo a condição de escravo e
assemelhando-se aos homens” (Fl 2, 5-7).
Sem uma
especial assistência da graça, seria inevitável para qualquer um, ao
ouvir a narração desses fatos, concluir que Jesus não passava de uma
mera criatura humana.
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Verdadeiro Deus
Por
isso, o Unigênito Filho de Deus, para sustentar nossa fé, tornou
patente sua origem eterna e incriada em muitos outros fatos e
circunstâncias: a anunciação à Santíssima Virgem por meio de um
Arcanjo; o aviso a São José, em sonhos, da concepção virginal de
Maria; a aparição de uma multidão de anjos aos pastores, perto da
gruta de Belém, para lhes anunciar o nascimento de Jesus; a moção
sobrenatural no interior dos Santos Reis Magos, sobre a
providencialidade daquele Menino. Sobretudo foi categórica sua
glorificação, efetuada pelo Pai e pelo Espírito Santo, no momento do
batismo no Jordão:
“Quando
todo o povo ia sendo batizado, também Jesus o foi. E estando Ele a
orar, o céu se abriu e o Espírito Santo desceu sobre Ele em forma
corpórea, como uma pomba; e veio do céu uma voz: ‘Tu és o meu Filho
bem-amado; em ti ponho minha afeição’” (Lc 3, 21-22).
O
próprio Salvador, ao afirmar “quem crê em Mim tem a vida eterna” (Jo
6, 47), não fazia referência à sua natureza humana, mas sim à sua
divindade.
A
multiplicação dos milagres, cujo auge foi a ressurreição de Lázaro,
tornou a todos evidente o pleno poder de Jesus sobre a natureza:
“Subiu
Ele a uma barca com seus discípulos. De repente, desencadeou-se
sobre o mar uma tempestade tão grande, que as ondas cobriam a barca.
Ele, no entanto, dormia. Os discípulos achegaram-se a Ele e o
acordaram, dizendo: ‘Senhor, salva-nos, nós perecemos!’ E Jesus
perguntou: ‘Por que este medo, gente de pouca fé?’ Então,
levantando-se, deu ordem aos ventos e ao mar, e fez-se uma grande
calmaria. Admirados, diziam: ‘Quem é este homem a quem até os ventos
e o mar obedecem?’” (Mt 8, 23-27).
Essa
mesma pergunta pervadiria a mente de todos os que, durante aqueles
ditosos três anos nos quais o próprio Deus caminhou pelas estradas
da Palestina, d'Ele puderam aproximar-se. Seria Elias que voltara,
ou algum dos outros profetas? Ou teria surgido um novo profeta? A
resposta germinou nas almas mais virtuosas, ou mais predispostas a
amar a verdade, e, pode-se dizer, desabrochou por inteiro na
confissão de Pedro: “Tu és o Cristo, o Filho de Deus Vivo!” (Mt 16,
16), ou no Calvário, quando, em meio ao terremoto, raios e trovões
consecutivos à morte de Jesus, brotaram dos lábios do centurião
romano as entusiasmadas palavras: “Este homem era realmente o Filho
de Deus” (Mc 15, 39).
Apesar
dessas - e de tantas outras - manifestações serem mais que
suficientes para levar os homens ao ato de fé na divindade de Nosso
Senhor, apareceram heresiarcas a negá-la, já no começo do
cristianismo. Aliás, uma das razões pelas quais São João, o
discípulo amado, escreveu seu Evangelho, entre os anos 80 e 100 de
nossa era, foi para reafirmar ser Jesus verdadeiro Deus. E o
conjunto dos Evangelhos, procurando sublinhar a mesma verdade, por
mais de cinqüenta vezes dá-Lhe o título de Filho de Deus.
É
necessário ter essas considerações em vista, para melhor analisarmos
e compreendermos a Transfiguração do Senhor.
Conveniência da Transfiguração
Jesus
poderia ter descido à Terra acompanhado de legiões de anjos, e
manifestado em todo o esplendor sua infinita grandeza divina.
Contudo não agiu assim. Revelou-nos sua natureza incriada de forma
progressiva, e aos poucos foi se tornando mais categórico.
Diante
de um povo ansioso por riquezas e grandezas materiais, era
conveniente usar de muita cautela no fazer-se conhecer enquanto
Deus: “Então ordenou aos discípulos que a ninguém dissessem que Ele
era o Messias” (Mt 16,20). Ao longo do Evangelho, diversas vezes Ele
repete essa proibição, obrigando a observá-la até os próprios
demônios: “Quando os espíritos imundos o viam, prostravam-se diante
dele e gritavam: ‘Tu és o Filho de Deus!' Ele os proibia severamente
que o dessem a conhecer” (Mc 3,12). No mesmo sentido, após a
Transfiguração no monte Tabor, disse Ele aos três apóstolos: “A
ninguém contem esta visão até que o Filho do homem tenha
ressuscitado dos mortos” (Mt 17,9). Caso a notícia se espalhasse,
receava Jesus que surgisse um movimento meramente exterior e
materialista, da parte de quem ansiava por um Messias temporal,
restaurador do poderio de Israel sobre as outras nações.
Nesse
contexto, como situar a Transfiguração?
Um
ensino puramente doutrinário não é capaz de, por si só, mover o
homem a transformar sua vida. Um antigo adágio ilustra esta verdade
de modo lapidar: “As palavras comovem, os exemplos arrastam”.
Sobretudo quando o exemplo é íntegro e esplendoroso na verdade e no
bem, tem ele uma força tal que age sobre as tendências da alma,
convidando a um certo caminho - e às vezes impondo-o.
Ademais, há outro fator indispensável para arrebatar qualquer
coração, e mantê-lo firme na reforma iniciada: a clareza do fim. Se
este não estiver claro, o ânimo arrefecerá quando surgirem os
primeiros lampejos das dificuldades e dos dramas, tão comuns em toda
mudança de vida.
Ao
tratar da Transfiguração de Jesus, assim se exprime São Tomás de
Aquino sobre essa necessidade muito própria à criatura humana: “Para
trilharmos bem um caminho, é necessário termos um conhecimento
prévio do fim. Assim, o arqueiro não lança com acerto a seta, senão
mirando primeiro o alvo que deve alcançar. (...) E isso sobretudo é
necessário, quando o caminho é difícil e áspero, a jornada
laboriosa, mas belo o fim” (3, q.45, a.1, c).
Ora,
para efetivar a Redenção com a morte na Cruz, e para formar a
Igreja, Nosso Senhor Jesus Cristo ia submeter os apóstolos a provas
duríssimas. Era muito conveniente, portanto, que fizesse conhecer
experimentalmente, pelo menos a três deles, os fulgores de sua
glória. Desse modo, não só se sentiriam robustecidos para enfrentar
os traumas de sua Paixão, como também mais facilmente ajudariam seus
irmãos a solidificar a Santa Igreja, e fortaleceriam os fiéis ao
longo dos tempos.
Fulgor no Tabor, para suportar as agruras do Calvário
No
mesmo tópico acima citado, São Tomás de Aquino continua a
esclarecer, com sua genialidade habitual e sapiencial clareza:
“O
Senhor, depois de haver anunciado a sua Paixão aos discípulos,
convidou-os a lhe imitarem o exemplo. (...) Ora, o fim de Cristo,
na sua Paixão, era alcançar não somente a glória da alma, que tinha
desde o princípio da sua concepção, mas também a do corpo (...). E a
essa glória também conduz os que imitam seu exemplo da Paixão,
segundo diz a Escritura: Por muitas tribulações nos é necessário
entrar no reino de Deus. Por isso era conveniente que manifestasse
aos seus discípulos a sua claridade luminosa; e tal é a
Transfiguração, que também concederá aos seus, segundo diz o
Apóstolo (São Paulo): Reformará o nosso corpo abatido para o fazer
conforme o seu corpo glorioso. Donde dizer (São) Beda: foi
conseqüência de uma pia providência que, tendo gozado por breve
tempo da contemplação da felicidade eterna, tolerassem mais
fortemente as adversidades” (3, q. 45, a. 1, c).
Já
muito anteriormente a São Tomás, o Papa São Leão Magno comentara:
“Para que os apóstolos concebessem com toda a sua alma essa ditosa
fortaleza, não tremessem ante a aspereza da cruz, não se
envergonhassem de Cristo e não tivessem por degradante o padecer...
manifestou-lhes o esplendor de sua glória, porque, embora cressem na
majestade de Deus, ignoravam o poder do corpo sob o qual a divindade
se ocultava... Pois, estando ainda revestidos da carne mortal, não
podiam ver e compreender, de modo algum, a inefável e inacessível
divindade, visão reservada na vida eterna para os limpos de coração”
(Sermão 51).
E
continuando o mencionado sermão, São Leão Magno afirma: “Cada membro
[do Corpo Místico de Cristo] pode almejar a participação na glória
que, com antecipação, resplandeceu na cabeça. O que já antes havia
sido previsto pelo Senhor, quando falava da majestade de sua vinda:
então os justos brilharão como um sol no Reino de seu Pai” (Mt 3,
33).
A
Transfiguração do Senhor foi uma excepcional graça mística concedida
aos três apóstolos escolhidos, no alto do Tabor. Sua recordação
ficou como uma fonte de sólida confiança, que lhes permitiu suportar
os maiores sofrimentos, pois, assistindo a ela, tiveram um vislumbre
da luz plena e refulgente da eternidade.
"Per crucem, ad lucem"
Deus
deseja conferir-nos eternamente sua própria felicidade, fazendo-nos
partícipes de sua natureza no esplendor da glória. É fundamental
para nós pensarmos, com constância, na glória eterna, como um prêmio
imensamente grande a nós oferecido. Nada há de melhor do que essa
meditação para enfrentarmos as dificuldades e as cruzes do
dia-a-dia.
Muitas
são as ofertas de uma felicidade passageira que encontramos hoje em
dia, apresentando fórmulas “mágicas”... fora do único caminho que é
Jesus Cristo e sua Igreja. Tudo não passa de pura ilusão. Fomos
criados para o Céu! Eis o que nos dá ânimo, resolução e alegria.
“Per crucem, ad lucem” – “Pela cruz, chegaremos à luz”.
Aqui
está uma observação importante a ser feita: muitos há que nos
mostram a cruz do Senhor, e isto é ótimo e digno de todo louvor!
Todavia, não basta. O objetivo de nossa existência não é a dor, nem
o sacrifício. Não podemos nos esquecer da luz, nosso verdadeiro
destino. A cruz não é o ponto final de nosso processo humano: é
apenas o caminho.
Graças místicas
A
Transfiguração de Jesus fortificou as virtudes da fé e da caridade
nos Apóstolos.
Enquanto a fé nos faz crer na divindade de Cristo e em suas
promessas, a caridade nos conduz a uma entranhada união com Deus.
São duas virtudes extremamente interdependentes. Sem a fé na
esplendorosa vida eterna que nos espera, a caridade tende a
desaparecer.
Mas, se
a fé e a caridade dos apóstolos tanto lucraram com a Transfiguração
do Senhor, não haverá algo, nessa mesma linha, que poderá auxiliar a
vida espiritual de cada um de nós?
A
resposta é inteiramente positiva. Deus derrama graças místicas sobre
todos os que trilham as vias da salvação, em intensidade maior ou
menor, segundo o caso. Mas ninguém está excluído de recebê-las. Quem
no-lo afirma é o famoso teólogo dominicano, Pe. Réginald
Garrigou-Lagrange:
“Para
esses autores, a vida mística não é coisa extraordinária, como as
visões e revelações, mas algo eminente na via normal da santidade.
Consideram eles que isso é comum para as almas chamadas a se
santificar na vida ativa, como São Vicente de Paulo. Absolutamente
não duvidam que os Santos de vida ativa tenham tido normalmente a
contemplação infusa bastante freqüente dos mistérios da Encarnação
redentora, da Missa, do Corpo Místico de Jesus Cristo, do preço da
vida eterna, se bem que esses Santos diferem dos puramente
contemplativos, no sentido de que neles essa contemplação infusa é
mais imediatamente dirigida à ação.”
É claro
que tais graças místicas não isentam ninguém de realizar os esforços
próprios à prática das virtudes, tal como no-lo refere em outro
trecho o mesmo autor:
“Conforme o que acabamos de dizer, vê-se que a ascética está
ordenada à mística. Acrescentemos por fim que, para todos os autores
católicos, a mística que não pressupõe uma ascese séria é uma falsa
mística: foi a dos quietistas.”
Um "Tabor" em nossos corações
É fora
de dúvida, pois, que Deus concede "Tabores", ou seja, graças
místicas, a cada um de nós.
Quem
não terá sentido, alguma vez, uma alegria interior, um palpitar do
coração, uma emoção calma mas profunda, ao assistir a uma bela
cerimônia? Ao apreciar o canto gregoriano, por exemplo? Ou ao
contemplar alguma imagem? Quiçá ao ver um lindo vitral banhado de
luz, dentro de uma igreja silenciosa, que deixa lá fora os ruídos do
mundo? São mil ocasiões em que a graça sensível nos visita, e nos
concede contemplações interiores, prédegustações da felicidade
perfeita que nos espera no Céu.
Dois
Doutores da Igreja, Santa Teresa de Jesus e São João da Cruz,
mestres da vida espiritual, dizem que a Providência costuma conceder
aos principiantes graças místicas que depois irão experimentar
novamente só no fim de suas vidas. Tal proceder divino visa
fortalecer essas almas para atravessarem os períodos de aridez. É
um modo comum de Deus agir: dá-nos consolações - o Tabor - para,
quando vier a hora do Getsêmani, termos forças, sabendo que o fim
será mais cheio de alegria e esperança.
São
graças que nos animam a enfrentar os sacrifícios desta vida.
Trata-se de experiências místicas que nos tornam patente quanto
Jesus nos ama e quer nossa eterna glória.
Assim,
ao longo de nossa existência terrena, já iremos experimentando um
pouco das delícias eternas, e as tendas tão desejadas por São Pedro
sobre o monte da transfiguração, Jesus as irá levantando no "Tabor"
de nossos corações.
Para
tal, Ele exige de nós apenas uma condição: que não Lhe coloquemos
obstáculos.
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